Machado de Assis
Joaquim
Maria Machado
de Assis, foi um cronista,
contista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista,
crítico e ensaísta, e nasceu no Rio de Janeiro, em 21 de junho de
1839.
Foi filho de operario mestiço e portugues chamado de Francisco José
de Assis e de Dona Maria Leopoldina Machado de Assis, que logo
falesceu deixando seu filho sobre os cuidados de sua madrasta, Maria
Inês. Ela se dedicou a Machado o matriculando numa escola pública,
a única que esse autodidata frequentou.
Machado
de Assis tinha uma saúde muito frágil e era gago e epilético.
Pode-se
dividir as obras de Machado de Assis em duas partes, a primeira é a
fase romantica, onde seus personagens possuem caracteristicas
amorosas sendo o amor e relacionamentos romanticos os principais
temas de seus livros. Podem-se destacar os livros: Ressurreição,
que foi seu primeiro livro e A Mão e a Luva.
A
segunda fase é a fase realista. Machado de Assis começa a mostrar
questões psicologicas de seus personagens. É a fase em que o autor
consegue retratar o realismo com êxito na literatura. Ele destaca no
ser humano seus defeitos e qualidades. Destacam-se as obras: Memórias
Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro.
Machado
de Assis influênciou demasiadamente a literatura brasileira. Foi
considerado um dos maiores escritores brasileiros e até hoje, isso
permanece. Ele também influenciou alguns autores como Olavo Bilac e
Lima Barreto que mostra a influência de Assis marcante em Triste Fim
de Policarpo Quaresma. Rubem Fonseca também sofreu influência de
Machado quando escreveu os contos “Chegou o Outono”, “Noturno
de Bordo” e “Mistura” que foram baseados na linguagem do mesmo.
Machado
de Assis foi uma grande influência em sua época, na literatura
brasileira principalmente, suas obras abordavam questões sociais e
até hoje influencia muitos escritores brasileiros e estrangeiros.
A
CARTOMANTE (Machado de Assis)
Hamlet observa a
Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa
filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço
Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela,
por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que
o fazia por outras palavras.
— Ria,
ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que
fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe
dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A
senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela
continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu
tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou!
Interrompeu Camilo, rindo.
— Não
diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua
causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas
mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito,
que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando
tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois,
repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas.
Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual
saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde
é a casa?
— Aqui
perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião.
Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu
crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem
saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa
misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava,
paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que
mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar,
mas reprimiu-se, não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele,
em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal
inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos
desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação
parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse
recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e
logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em
nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só
argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é
ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do
mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes,
ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não
só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às
cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de
sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos
Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela
rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo
desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem para a casa da
cartomante.
Vilela,
Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das
origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância.
Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no
funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico;
mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe
lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou
Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta;
abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo
arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É
o senhor? Exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu
marido é seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela
olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou
de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do
marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos,
boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava
trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o
porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher,
enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe
tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza
põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem
intuição.
Uniram-se os três.
Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo,
e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos
dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita
tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como
daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que
gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral,
quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di
femina:
eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em
si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios.
Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela
mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as
cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que
procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao
marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele
anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita
apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então
que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os
olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades
sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em
que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos
ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas
que o cercam.
Camilo
quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma serpente,
foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num
espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e
subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura;
mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos!
Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos,
estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e
pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando
estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela
continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu
Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia
que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar
as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este
notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão
frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências
prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que
entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de
diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia
do ato.
Foi por esse tempo que
Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la
sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a
cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por
ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu
mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não
podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum
pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal
compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e
avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e
pródigo.
Nem por isso Camilo ficou
mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a
catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era
possível.
— Bem,
disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das
cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí
a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco,
como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre
isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa
deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência
de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de
tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia
acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os
meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se
com lágrimas.
No dia seguinte, estando
na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já,
já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de
meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais
natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava
matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão,
afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a
notícia da véspera.
— Vem
já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele
com os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a
ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela
indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele
acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo:
depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de
recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia
achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada,
nem ninguém. Voltou à rua, e a ideia de estarem descobertos
parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia
anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser
que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas
visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria
confirmar o resto.
Camilo ia andando
inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam
decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda
peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de
Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem
demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de
mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora
da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o
que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente,
tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada
houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois
rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na
direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou,
entrou e mandou seguir a trote largo.
— Quanto
antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas
o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava,
e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da
Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com
uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo,
e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda,
ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita
consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das
cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras
estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia
a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no
tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande,
extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns
fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições
antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por
outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se
para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de
ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas
asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no
cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto,
fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens,
safando a carroça:
— Anda!
agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria
removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras
cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da
carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama
e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e
entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou
rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe
repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase
do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas
no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele,
se...?
Deu por si na calçada,
ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou
pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos
dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada.
Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas
era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes
latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma
mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo
entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a
primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por
uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes,
paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que
destruía o prestígio.
A
cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto,
com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia
em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de
cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente,
olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma
mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos
sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos
primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez
um gesto afirmativo.
— E
quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A
mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu;
disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e
baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas;
baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois
começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e
ansioso.
— As
cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para
beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse
medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro,
ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela;
ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da
beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou,
recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A
senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão
por cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá,
disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo
indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão
da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à
cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho
destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras
de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher
tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como
pagasse; ignorava o preço.
— Passas
custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer
mandar buscar?
— Pergunte
ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de
dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço
usual era dois mil-réis.
— Vejo
bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do
senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o
chapéu...
A cartomante tinha já
guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve
sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que
levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava
acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando;
a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora
melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido
e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris;
recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos
e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu
também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto;
podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos,
vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar
a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também
o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga
assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as
palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da
consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não
adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era
assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam
tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro.
Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher,
as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá,
vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da
despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que
formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o
coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de
outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou
para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu
dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro,
longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à
casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e
entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e
mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa,
não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe
respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram
para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um
grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e
ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de
revólver, estirou-o morto no chão.
Análise:
O
enredo da história trata de um casal que tem, ou iniciaria um
romance proibido, já que ela, Rita, era casada com Vilela, melhor
amigo de Camilo. Para saber se seu amor era de fato correspondido,
Rita consulta uma cartomante que confirma ela como amada, porem, a
linda história de amor é encerrada, pois, Vilela descobre o romance
através de cartas anônimas e mata á tiros, Rita e Camilo. A
tipologia do texto é narração e seu gênero é o conto. O tempo
histórico desse conto está no século XIX e recorre a analepse
durante seu tempo de discurso. Dentre seus personagens, os
protagonistas são Rita, Camilo, Vilela e a cartomante e o secundário
é o cocheiro. Os protagonistas são personagens redondos e o
secundário é um personagem – tipo. Em, A cartomante, o narrador é
heterodiegético, pois, está fora da história. Usa linguagem formal
e de função emotiva.